Imagina que você é o(a) líder de marketing de uma multinacional e está recrutando uma nova pessoa para sua equipe. Você chega à fase final onde precisa escolher entre dois candidatos.
O primeiro candidato tem excelentes habilidades técnicas, como experiência e conhecimento no setor, e todas as certificações necessárias, mas segundo referências de gerentes anteriores, carece de boas habilidades socioemocionais.
O segundo candidato está na situação contrária: não é forte no aspecto técnico, mas sim no socioemocional.
Qual dos dois você contrataria? Essa foi a pergunta que fiz há dois anos a 247 líderes de Recursos Humanos (RH) no Brasil, e é a pergunta que faço a você agora.
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Reflita bem: qual grupo de habilidades é mais importante hoje? Durante a pandemia, essa reflexão me levou a investigar profundamente.
Notei que a aceleração tecnológica estava redefinindo as habilidades dos profissionais e líderes mais bem-sucedidos. No entanto, a resposta à pesquisa me surpreendeu: 93% dos RH optariam pelo segundo candidato.
Isso ia contra tudo o que aprendi na escola e no mercado de trabalho analógico e pré-digital: que é necessário se especializar, acumular conhecimento e que as habilidades socioemocionais eram apenas uma distração e não tinham impacto nos negócios.
Esses números demonstraram exatamente o contrário, e por isso fiz esta outra pergunta: por quê? “Mas é simples, Andrea”, me responderam os RH. “Por duas razões principais: as habilidades técnicas, se não as têm, são mais fáceis de ensinar, enquanto é muito mais difícil ensinar habilidades de comportamento.
E, em segundo lugar, porque dentro da empresa já temos ferramentas de inteligência artificial (IA) que desempenham algumas habilidades técnicas melhor que nossos colaboradores, mas ainda não temos nada semelhante no que diz respeito às habilidades comportamentais, que estão longe de ser substituídas.”
Os resultados dessa pesquisa, publicados em vários meios no Brasil, são validados por outros estudos: a nível regional de LATAM, um estudo da CEPAL indica que 65% das empresas em LATAM relatam dificuldades para encontrar talento com as habilidades digitais adequadas.
Isso não inclui apenas competências técnicas como programação, análise de dados e cibersegurança, mas também habilidades interpessoais como adaptabilidade, pensamento crítico e capacidade para trabalhar em ambientes digitais colaborativos.
Por outro lado, a nível mundial, 800 executivos entrevistados pela plataforma de educação edX estimam que quase metade (49%) das habilidades que existem na força de trabalho hoje não serão relevantes em 2025.
Estamos de fato em um momento de inflexão onde se está redefinindo o que significa o Capital Humano e, consequentemente, quais são as habilidades necessárias para sermos melhores líderes, profissionais e seres humanos em geral.
O grande catalisador dessa mudança, mais profundo que qualquer outro momento da história, é hoje a inteligência artificial, que está chegando para realizar o trabalho intelectual que acreditávamos intocável e representado por nossas hard skills.
Não está convencido? No ano passado, foi lançada uma música chamada “Heart of my Sleeve”, atribuída a Drake e The Weeknd. Aparentemente, nenhum desses artistas teve algo a ver com essa música. Foi criada por um artista chamado Ghostwriter, que utilizou uma IA para modelar estatisticamente as vozes dos artistas, criar a música e escrever as letras.
Basicamente, foi gerada por inteligência artificial e lançada no TikTok, onde mais de 6 milhões de pessoas a ouviram (entre eles eu, e te garanto que a música é muito boa, de verdade).
Para entender quais são as competências principais que determinam o sucesso do Capital Humano na era da IA, primeiro precisamos mapear o que a IA já faz e o que fará em breve, melhor que nós.
Entre as principais habilidades da IA, podemos notar a de fornecer respostas (a partir de conhecimento), de analisar e processar dados, de obter eficiência e produtividade (minimizando o erro) e até de criar conteúdo (hoje graças à IA generativa).
Agora é evidente que se ainda pensamos que os melhores líderes e profissionais são aqueles que têm muitas respostas e conhecimento, são mais inteligentes e trabalham mais duro, estamos enganados: esses são precisamente os que estão em maior risco de serem substituídos.
Na medida em que a IA fornece todas as respostas, os líderes e profissionais do futuro terão que desenvolver a habilidade de fazer melhores perguntas (ou “prompts”) que demonstrem pensamento crítico.
Posto que a IA analisa e processa melhor os dados, os líderes e profissionais do futuro terão que melhorar a habilidade de extrair sentido dos dados (escolhendo melhores métricas e cuidando da qualidade dos dados) através do que chamo de “Data Sensemaking”.
A IA faz os processos mais eficientes e produtivos por meio da habilidade de seguir à risca os scripts. Portanto, os líderes e profissionais do futuro terão que desenvolver a habilidade de se adaptar a situações complexas e imprevisíveis (cada vez mais comuns hoje em dia) por meio da flexibilidade cognitiva.
Já que a IA cria conteúdo de forma mais rápida que os seres humanos, os líderes e profissionais do futuro terão que desenvolver sua criatividade e focá-la em refinar o “output” bruto das ferramentas de IA generativa.
Afinal, não é verdade que a primeira versão das respostas do ChatGPT ainda precisa de muitos ajustes humanos? Por último, na medida em que a IA já é melhor que os seres humanos em hard skills, precisamos externalizar ao máximo nessa área para liberar tempo e recursos disponíveis e nos concentrar em melhorar nossas soft skills – que, como vimos, são insubstituíveis.
A habilidade de colaborar, que nasce da confiança, da vulnerabilidade e da empatia, se tornam habilidades cada vez mais importantes.
As novas habilidades que definem um capital humano complementar à inteligência artificial, e não substituível por ela (o que poderíamos definir como um capital “híbrido”), são precisamente as respostas às habilidades da IA mencionadas acima:
01
Repercepção:
A repercepção é a habilidade crucial de repensar constantemente suas crenças e suposições diante das mudanças externas em tecnologia, necessidades do cliente e condições de mercado. Isso envolve a capacidade de fazer melhores perguntas e tomar decisões mais focadas no consumidor final do seu negócio. Em um mundo em constante evolução, líderes e profissionais precisam ser ágeis e flexíveis, ajustando suas estratégias de acordo com novas informações e desenvolvimentos. A repercepção permite que eles permaneçam relevantes e competitivos, adotando uma mentalidade de aprendizado contínuo e abertura para novas ideias.
02
Sensemaking de Dados:
Sensemaking de Dados: A habilidade de “Data Sensemaking” envolve a extração de insights valiosos de grandes volumes de dados, possibilitando a tomada de decisões mais informadas. Isso requer uma escolha assertiva de novos KPIs (indicadores-chave de desempenho) que devem ser medidos, enquanto a IA realiza o processamento dos dados de forma eficiente. Líderes e profissionais devem ser capazes de interpretar esses dados, contextualizá-los e utilizá-los para guiar a estratégia e a operação de seus negócios. O sensemaking de dados é essencial para transformar informação bruta em conhecimento acionável.
03
Flexibilidade Cognitiva:
Flexibilidade Cognitiva: Flexibilidade cognitiva é a habilidade de combinar múltiplas áreas do saber, transformando-se em “polimatas” ao invés de apenas especialistas. Essa capacidade é crucial para fazer os “prompts” corretos para uma IA, que possui mais respostas do que qualquer humano. A flexibilidade cognitiva permite que os profissionais naveguem por diferentes disciplinas, integrando conhecimentos diversos para resolver problemas complexos e inovar. Em um ambiente de trabalho que valoriza a adaptabilidade e a inovação, essa habilidade se torna um diferencial significativo.
04
Antifragilidade:
Antifragilidade é a habilidade de prosperar em meio ao caos e à incerteza, utilizando a IA para terceirizar a execução de tarefas mais automatizáveis, rotineiras e familiares. Isso libera tempo para os profissionais experimentarem novas iniciativas, mesmo correndo o risco de errar. O profissional antifrágil entende que o erro é uma oportunidade de aprendizado e crescimento. Como um cientista, ele experimenta e ajusta suas abordagens, promovendo um ciclo contínuo de melhoria e inovação. Essa mentalidade permite que os indivíduos e organizações se fortaleçam com os desafios e as mudanças.
05
Humanização:
Já que estudos mostram que times híbridos de colaboradores humanos e IA podem performar pior que times compostos apenas por humanos, é essencial desenvolver a habilidade de estruturar confiança dentro das equipes. A confiança é algo insubstituível pela IA e fundamental para a colaboração eficaz. A humanização envolve a construção de relacionamentos baseados em empatia, comunicação clara e apoio mútuo. Equipes que conseguem equilibrar as capacidades da IA com a inteligência emocional e social dos humanos têm maior potencial de alcançar resultados excepcionais, aproveitando o melhor dos dois mundos.
É só assim, focando nas habilidades insubstituíveis que temos como humanos, que poderemos aumentar o potencial do nosso capital humano no mercado de trabalho. “Aumentar” não é uma palavra que escolho ao acaso: a “aumentação” é justamente o impacto que a IA tem nas nossas habilidades humanas, à medida que desenvolvemos e melhoramos essas novas habilidades mencionadas neste artigo. Trata-se, então, de migrar de um capital humano para um capital híbrido, onde nossa inteligência humana terá um coadjuvante “artificial”, que nos fará, por um lado, mais produtivos e eficientes, mas por outro lado, mais humanos também.